Fronteira e (contra)identidade

La frontera es viralata (…)
En los ladrido de la gente
uno no puede reconocer la raza porque todo se intrevera.
¿Que tipo de árvore ía salir de acá
si nosotro semo fío du vento?
Fabián Severo

Tu sabes quando um cachorro deixa de ser cachorro?” Essa pergunta inusitada me foi feita por um vendedor de panchos na avenida principal que une Brasil e Uruguai, nas bandas de Aceguá, campanha meridional do Rio Grande do Sul. Diariamente, os habitantes da região cruzam a fronteira seca entre os dois países como se fosse um único lugar, demarcado por uma “linha imaginária”. Nesse limiar prevalece uma cultura misturada que desafia a percepção apressada e pouco versada nas relações de contraste e nos fluxos de movimento. Em Aceguá, não há um rio ou ponte que delimite claramente o território, ao contrário de outras cidades fronteiriças. Morar na fronteira é como habitar “uma terra só”, como indica o título do livro de contos de Aldyr Schlee, de 1984, o qual faz referência à fronteira entre Jaguarão (Br) e Rio Branco (Uy). Aqui, algumas pessoas vivem no Uruguai e trabalham no Brasil, enquanto outras residem no Brasil e trabalham no Uruguai. Há gente que tem pai uruguaio e mãe brasileira e que sai do próprio país apenas para buscar alguns produtos, porque do outro lado é sempre mais em conta.

Naquele dia, quando saí de Bagé e cruzei a fronteira a caminho de Melo, capital uruguaia de Cerro Largo, parei em Aceguá/Aceguá, entre os dois países, para abastecer o carro e comer um lanche. Basta andar um pouquinho pelas ruas de chão batido para ver as opções gastronômicas oferecidas dos dois lados da fronteira, anunciadas em placas repentinas. Além do pancho, há também chorizos, carpincho asado, pollo relleno, hamburguesas e milanesas. Há sempre alguém mateando em frente dos estabelecimentos comerciais, sentado em cadeiras postas na calçada, acompanhado de cães vira-latas de pelo largo ou de um cavalo amarrado no portão, habituado a beber água num balde velho e improvisado. Pedir um pancho, essa iguaria famosíssima de nacionalidade uruguaia, feita com uma salsicha longa inserida em um pão minúsculo, é um hábito corriqueiro dos que estão de passagem pela fronteira, seja para entrar ou sair do país ou para fazer compras nos freeshops e bolichos de mercadorias variadas.

Como já é de costume, neste dia passei por Aceguá com o automóvel carregado de tambores para participar de mais um toque de candombe na Ciudad de Melo, num domingo ensolarado. Foi nessa ocasião que ouvi do vendedor de panchos a pergunta curiosa.

– “Tu sabes quando um cachorro deixa de ser cachorro?”

 Tentei responder de imediato e chutei:

– “Quando ele morre?”

– “Não, quando ele atravessa a rua e passa pro Uruguai, porque lá ele é perro”.

Esse chiste engraçado, provavelmente muito conhecido naquelas bandas, ficou ressoando em mim ao longo da viagem, de tal modo que me fez pensar numa das características que definem a fronteira entre Brasil e Uruguai. A piada levada a sério soava como enigma que unia alguns pontos até então imperceptíveis para mim e, talvez, para muitas pessoas que evocam o discurso das “identidades fronteiriças”.

Primeiro, porque conforme o espirituoso vendedor de panchos, quando o cachorro atravessa a rua, ele deixa de ser cachorro para tornar-se outro (devir perro). No entanto, essa mudança é apenas de nome, de língua, uma questão de tradução, pois como se sabe, cachorro em castelhano é “perro”. Ou seja, ele não deixa de existir como eu havia presumido ao responder “quando morre”. Ele se torna outro sem deixar de ser ele mesmo, isto é, uma transformação aparente. Consequentemente, esse câmbio de identidade não é substancial, mas uma variação linguística decorrente da mudança de lado e de nacionalidade.

O segundo ponto curioso é que o cachorro deixa de ser cachorro apenas porque atravessou a rua que está entre os dois países, a poucos metros de distância. Foi de Aceguá-Brasil para Aceguá-Uruguai, dois países unidos por cidades de mesmo nome, compreendidas não só por semelhanças, mas também por diferenças. Uma unidade heterogênea e variante, o que faz da fronteira, nesse caso, um exemplo real de paradoxo.

A questão se complexifica ainda mais porque, ao cruzarmos a linha sem nos aperceber e sem notar qualquer alteração significativa, ainda assim algo parece mudar, seja em aparência, paisagem, ambiência ou em nome. Ser perro ao invés de cachorro requer uma performance diferente, uma língua diferente que se manifesta não em estado puro, mas híbrido, mesclado, difuso. Consequentemente, nesse cruzamento estão em jogo algumas inversões de juízo, outras maneiras de falar, de se portar, de gesticular, outras condutas éticas e valores morais.

 Fui percebendo isso no meu próprio comportamento ao transitar com frequência por diferentes cidades uruguaias em função dos tambores e das llamadas de candombe. Ter de fazer uso de outra língua para me comunicar é um fato que altera a maneira como eu penso e como meu corpo se expressa, ainda mais quando estou na companhia dos meus amigos tamborileros. A entonação, o gesto, o sotaque, a postura corporal, a escolha do vocabulário e do vestuário, bem como o grau de tolerância para chistes, mangueadas e jodas fazem parecer que há outra pessoa falando por mim. Inclusive os assuntos que giram em torno do candombe são difíceis de narrar sem acionar a língua castelhana e o meu “devir uruguaio”. Há um duplo movimento em jogo que remete à ideia de intercâmbio, de vai-e-vem, de levar e trazer.

Aquele que cruza fronteiras reconhece a riqueza das diferenças por experiência própria, pois habita um território ao avesso, um território que se transforma e se desmaterializa facilmente. O fronteiriço vive seus pares de opostos, vive o seu duplo, justamente porque habita o vai-e-vem onde todos os caminhos se cruzam, se afastam e se unem. Em suma, o fronteiriço, como o Exu da cosmologia africana, é um ser de encruzilhadas.

La frontera es el lugar donde las aguas se mezclan,
el agua del mar con el agua dulce.
Y acá en el medio está la cosa mesclada
donde brota y crece especies que no crecen en otros lados.
Nosotros somos estas especies.
Ernesto Díaz

Temos de lidar com outro paradoxo que permeia o percurso que envolve o cruzamento de fronteiras territoriais. Por mais que os habitantes dessas regiões estejam envolvidos em complexas redes de intercâmbio, trocas culturais e comerciais em zonas móveis e fluidas, as quais remetem ao mundo dos trânsitos e passagens (Mbembe, 2019), viver na região da fronteira com o Uruguai envolve um sentimento de pertencimento ao lugar. A crítica aos processos de territorialização político-geográficos não exclui a preocupação dos fronteiriços e fronteiriças em criar pontos de ancoragem telúrica a partir da terra, do chão.

 Esse sentimento é ativado, por exemplo, sempre que os antigos usam a expressão “pago” para denominar qualquer lugar espacial, cujo sentido está vinculado ao “arraigo a la tierra”. O sociólogo nativista Barbosa Lessa (2008) escreveu que, no Sul, existe um sentimento telúrico muito forte que opera como uma força cósmica: “telurismo é a capacidade de sentir a presença do solo, do chão, da gleba, amando-a a mais não querer” (Lessa, 2008, p. 14). Há algo que nos liga ao solo, ao chão. Ser da fronteira, portanto, implica em “saber-se da fronteira” (Fischer, 2014, p. 08) e muitas vezes implica também em se identificar como um ser da fronteira e de fronteira perante o outro.

No entanto, essa adesão ao território é relativa e avessa aos compromissos formais de filiação. O que quero dizer é que, na fronteira, o enraizamento à terra tem pouco a ver com laços de identidade, no sentido decorrente da crença absoluta numa “comunidade originária”. Esse apego ao chão é muito mais dinâmico e fluido do que imaginam as narrativas literárias regionais e os discursos ideológicos do “tradicionalismo”, da “origem primordial”, das identidades nacionais, étnicas e religiosas.

O pertencimento ao solo que caracteriza o viver dos fronteiriços tem muito mais a ver, quiçá, com a noção de “Terrestre”, elaborada por Bruno Latour (2020), do que com a nostalgia da autenticidade. Latour elaborou a noção de “Terrestre” para se contrapor ao “localismo” dos modernos, nascido como resposta ao desenvolvimento desenraizado e homogeneizante da Globalização (a velha dicotomia mal resolvida entre Local e Global). Para Latour, o “Local” remete a uma concepção fechada e limitada do pertencimento, sugerindo assim uma visão estreita e excludente da vida. Já a noção de “Terrestre”, ao contrário, promove uma visão aberta e inclusiva, que aceita a multiplicidade de seres que compõem o mundo. Nas palavras do autor, “o Terrestre, estando vinculado à terra e ao solo, é também uma forma de mundificação, já que não se restringe a nenhuma fronteira e transborda toda as identidades” (Latour, 2020, p. 68). Dito de outro modo, o “Terrestre” reconhece a necessidade de um pertencimento ao solo, mas sem as limitações do “Local”, já que este polo está frequentemente associado, segundo o autor, à homogeneidade étnica e às identidades fixas[i].

Soma-se a esse argumento, o fato de que as práticas sociais desta fronteira, em especial, se desenvolvem não exatamente conforme a lei e a herança, e sim conforme as trocas clandestinas, as negociações provisórias, a esperteza tática e a vivência ambivalente e contraditória típica de quem está na insegurança liminar. Isso porque a fronteira é percebida, pelos órgãos oficiais, como zona de perigo, e por isso deve ser vigiada e controlada. Consequentemente, graças ao questionamento frequente à ideia de Nação observado em suas nas práticas sociais e nas formas de conduta moral, os habitantes fronteiriços passam também a ser estigmatizados como “criaturas estranhas”[ii], perigosas e indesejáveis na percepção dos poderes hegemônicos (Dorfman, 2009).

Desse modo, dizer que a fronteira entre Brasil e Uruguai é local dos fluxos de mobilidade e das trocas interculturais, não significa ignorar, como mostrou Dorfman (2009 e 2013) e Pereira (2018), o controle intenso exercido nessas margens pelas autoridades estatais, seja na presença das forças militares ou das agências de controle aduaneiro. Justamente por conta dessa vigilância coercitiva, a população local adquiriu certa habilidade para driblar as adversidades, gerando, assim, um modo de existência astuto, quase sempre reforçado pela clandestinidade positiva e pela fluidez identitária.

O ser fronteiriço gaba-se da sua condição singular de trânsito, errância e inadequação, aspectos que podem ser considerados como superiores em comparação à vida sedentária e ao gosto por lugares fixos. É alguém que conhece os dois lados da margem Brasil-Uruguay e, por isso, possui habilidades para transitar com astúcia em mundos diferentes e performar identidades ambíguas. Aciona habilidosamente seu devir uruguaio quando está no Brasil e seu devir brasileiro quando está no Uruguai. O sentimento de pertencimento e identificação com o território e com as ambiências da fronteira nunca poderá ser, portanto, uma filiação genealógica, um dado substancial e estático, mas um enraizamento dinâmico capaz de abrir portas e criar mundos novos.

Ainda que o nosso exemplo inicial tenha sido um tanto jocoso e banal, o caso do cachorro que se transforma em perro ao atravessar a linha “divisória” não seria a máxima expressão do que tem caracterizado as regiões de fronteira entre Brasil e Uruguai? Isto é, a inclinação para viver outras vidas sem deixar de lado a sua própria? Trata-se aqui de performar com o outro, estar aberto ao que está por vir, deixar-se afetar pelas experiências e emoções que afetam o outro, enfim, deixar de lado algumas convicções, acatar outras, trocar de pele e de pelo, tal como o cachorro que muda de identidade e de nome ao cruzar o limes territorial[iii].

Se a noção de identidade foi historicamente construída a partir de referenciais de estabilidade, de algo que possui contornos nítidos, aqui ela é percebida como categoria no mínimo insuficiente. A piada do cachorro é importante porque ela contraria o significado usual da fronteira como expressão de identidade, isto é, como parte limítrofe de um espaço ou como marco que divide as coisas e as pessoas, firmando-se, ao contrário, como um lugar de múltiplas possibilidades. Como advertiu muito bem o historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe (2020), as políticas de identidade têm produzido atualmente um recuo para dentro de bolhas, muito semelhante ao recuo já produzido outrora pelas políticas nacionalistas. Ainda que a identidade seja uma estratégia política crucial para grupos que a reivindicam permanentemente, na fronteira ela não existe de forma estável, fixa, senão como abertura circunstancial para a alteridade. Conforme Aldyr Schlee, “nesta região, a fronteira é menos o signo de um território circunscrito e fechado sobre si mesmo do que um espaço aberto e móvel onde cada um se projeta no outro. É um lugar de reencontro, de circulação e de conhecimentos repartidos” (Schlee, 2014, p. 24).

Qual outro conceito melhor exprime a natureza dos encontros que ocorrem nas margens, senão o da própria noção de fronteira imaginada como lugar das amalgamações, em detrimento da unicidade essencial associada à noção de identidade? Se a centralidade recai sobre as trocas culturais e relações de intercâmbio, e não sobre os marcos instituídos (nações, cidades, identidades), como estabelecer precisamente o limite entre uma coisa e outra? Como podemos realmente saber, na fronteira entre Brasil e Uruguai, que um cachorro deixou de ser cachorro para tornar-se perro? A sensibilidade a tudo o que é heterogêneo, móvel e inacabado faz da fronteira um espaço da liminaridade[iv] (limes) e da contraidentidade substancial ou, se preferirmos, um lugar das múltiplas identificações provisórias.

Autor: Lisandro Moura, antropólogo e professor do Instituto Federal do Sul – IFSul, campus Bagé.
Foto montagem: Lisandro Moura.

Referências

DORFMAN, Adriana. Contrabandistas na fronteira gaúcha: escalas geográficas e representações textuais. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. UFSC, 2009.

DORFMAN, Adriana. A condição fronteiriça diante da securitização das fronteiras do Brasil. In: NASCIMENTO, D.; PORTO, J. Fronteiras em perspectiva comparada e temas de defesa da Amazônia. Belém: EDUFBA, 2013.

FISCHER, Luís Augusto. Saber-se da fronteira. Revista Vox, ano 3, nº 7, pp. 08-09, 2014.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? – Como se orientar politicamente no Antropoceno. Tradução de Marcela Vieira. 1ª ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

LESSA, Barbosa. Nativismo, um fenômeno social gaúcho. 2ª. ed. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2008.

MBEMBE, Achille. A ideia de um mundo sem fronteiras. Tradução de Stephanie Borges. Revista Serrote. São Paulo: Instituto Moreira Salles (IMS), março de 2019.

MBEMBE, Achille. Contra o recuo identitário. A “ética da passagem”. Tradução Cláudio Andrade. Humboldt: Revista de Cultura. Goethe-Institut na América do Sul, janeiro de 2020.

PEREIRA, Isis Karinae Suárez. A fronteira que conheci: entre estados, coisas e pessoas. Tessituras, Pelotas, v. 6, n. 1, p. 54-58, jan./jun. 2018.

SCHLEE, Aldyr Garcia. Linguagem de fronteira. In. Revista Vox, ano 3, nº 7, pp. 24-29, 2014.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. 2ª ed. (Coleção Antropologia). Petrópolis: Vozes, 2013.

[i] Em livro publicado em 2017, o antropólogo Bruno Latour critica a forma tradicional de pensar em termos de “Local” e “Global”. Sugere que essa dicotomia é inadequada para abordar os desafios contemporâneos, no qual as questões ambientais, sociais e políticas exigem ser tratadas de maneira interligada. Em substituição à ideia de “Local”, a qual nos apegamos para combater os abusos da globalização desigual, Latour propõe, então, uma nova forma de entendimento e de sensibilidade: o “Terrestre”. Trata-se, segundo o autor, de uma forma de “repolitizar nosso pertencimento ao solo” (Latour, 2020, p. 67). Em vez de se basear em identidades fixas e fronteiras rígidas, como sugere a abordagem política do “localismo”, o “Terrestre” sugere uma política que reconhece e valoriza a fluidez e a interconexão. O termo “mundificação”, utilizado pelo autor, refere-se justamente a essa capacidade que os terrestres têm de “criar mundos” para além dos limites geográficos.

[ii] Faço referência aqui a Georg Lichtenberg, fisionomista alemão e autor de aforismos do século XVIII, que escreveu: “A fronteira é o lugar das mais estranhas criaturas”.

[iii] Jacques Leenhardt (2002), ao elaborar seu “pensamento de fronteira”, lembra que a etimologia da palavra “limite” remete à expressão latina “limes”, a qual designa um intervalo, uma margem, uma borda sem apropriação.

[iv] É interessante pensar em como a ideia de fronteira, esboçada neste texto, pode ser traduzida a partir da ideia de liminaridade de Turner (2013). O campo do liminar aparece como assunto privilegiado em suas análises sobre os rituais de iniciação praticados pelos povos ndembu, concebidos como rituais de “antiestrutura”: “as entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, pelas convenções e cerimonial” (Turner, 2013, p. 98). Os estudos antropológicos de Turner sugerem, portanto, que os sujeitos fronteiriços (em estado liminar) adquirem aspectos indeterminados. Daí advém a incompatibilidade com a noção de identidade.