Pedindo licença a Jean Cocteau, “eles não perguntaram se era impossível, foram lá e fizeram”
Ativistas da cultura, estudantes e professores, alimentados pelo desejo de valorizar e mobilizar a comunidade cultural na fronteira Jaguarão/Río Branco, criaram a SIC – Sociedade Independente Cultural no dia 16 de fevereiro de 1987. A gente respirava os ares finais das ditaduras militares no Brasil e no Uruguai, que foram se dissipando aos poucos do ponto de vista governamental. Nós precisávamos de um tempo para que os artistas, mestres e produtores culturais absorvessem a ideia de sacudir o potencial das duas cidades que adormeciam em um sítio histórico privilegiado, em uma região fronteiriça que ainda vivia sob uma censura velada.
A Sociedade Independente Cultural nasceu com o propósito de questionar e promover o que não era exposto, o que era proibido, além de fazer ouvir o controverso. Ela surgiu do sentimento de identificação com aquele tempo e espaço vividos, com a diversidade cultural compartilhada no entorno do Rio Jaguarão. Ora Uruguai, ora Brasil, ora ambos os países… Na verdade, fomos influenciados pelos ventos do Projeto “Jaguar”, uma atividade cultural não governamental que agitou aquela fronteira no começo dos anos 80.
A SIC surgiu de uma adversidade (eu diria que foi o estopim), pois em 1986 foi criado o primeiro Coral Municipal de Jaguarão sob a regência do Maestro Jarbas Taurino. Ele foi afastado pelos gestores municipais da época por pressões de cunho político, em função de suas ideias progressistas. A partir daí, o maestro organizou um manifesto cultural, chamando para uma grande reunião em que participaram vários entusiastas, ativistas e professores fronteiriços, brasileiros e uruguaios. Ali ficou estabelecido que não mais aceitaríamos escolhas entre alternativas que não valorizem as artes e as culturas, e que outros caminhos eram possíveis. Logo depois, no ano de 1987, no salão de festas da Igreja Episcopal Anglicana aconteceu a reunião que criou a nossa entidade.
A partir de seu nascedouro, a SIC vem se fazendo ouvir através dos mais variados eventos e ações culturais locais, regionais e internacionais. O Coral Independente, por exemplo, se manteve até 1990, o grupo Cênico Contranestesia se apresentou até 1998, sendo que a peça “Nuestra América” ficou entre os cinco melhores espetáculos do teatro amador do Rio Grande do Sul, em 1995. Foram realizados diversos seminários socioculturais, sendo que com o surgimento da Unipampa – Universidade Federal do Pampa, em 2005, eles ganharam maior proporção e abrangência. O Festival “Canto do Jaguar” teve uma grande importância com suas três edições históricas. Como disse o poeta Martin Cesar, “os festivais reuniam músicos uruguaios, argentinos e brasileiros em um congraçamento em que imperava a integração verdadeira entre povos que não se dividiam por uma linha geopolítica”. Além dessas iniciativas, a SIC promoveu exposições, colóquios, lançamentos de livros e CD’s, e sempre se fez presente em outras iniciativas realizadas por organizações parceiras, públicas e privadas.
Anualmente a SIC promove o Festival Jaguararte e a FALA – Feira Alternativa de Literatura e Arte da Fronteira. Ambos os eventos oferecem oficinas nas duas cidades, apresentações artístico-musicais, audiovisual, entre outras expressões, e envolvem diversos fazedores de cultura do entorno do Rio Jaguarão e de outras regiões. Em 2010 começamos uma parceria com o movimento Fronteras Culturales, quando colaboramos para a realização de alguns seminários regionais, como o 1º e o 3º Seminário de Integração Cultural Brasil-Uruguai, respectivamente em 2010 e 2014, que tiveram a participação de representações dos municípios de toda a região de fronteira. Outro exemplo é o encontro Diálogo Na Fronteira, em 2015, realizado pelo Ministério da Cultura do Brasil, com apoio do Comitê de Prefeitos, Intendentes e Alcaldes, que teve a participação do Ministério de Educação e Cultura do Uruguai.Em 2021, também produzimos o longa metragem “Fronteriz@s”, com recursos da Lei Aldir Blanc. Por toda essa trajetória, em 2024, obtivemos o certificado de Ponto de Cultura do Rio Grande do Sul e aprovamos o 1º Festival de Cinema de Jaguarão, agora pelo edital estadual da Lei Paulo Gustavo. Este festival deve ser realizado em 2024, em parceria com o Fronteras Culturales.
O Ponto de Cultura SIC está estabelecido num prédio histórico pertencente ao Círculo Operário de Jaguarão. Além das salas de reuniões também disponibilizamos, em parceria com o Círculo Operário, a Biblioteca Americando, (aberta para o grande público) que possui um importante acervo de livros e periódicos.
A SIC segue sua luta pela difusão da cultura buscando sempre a integração cultural dos povos, a partir das fronteiras. E, retomando o preâmbulo atribuído a Jean Cocteau, “sem perguntar se é possível ou não”, lutamos pela construção de um outro mundo possível, com “cheiro de sal e primavera”.
Sequência de fotos: Festival Jaguar Arte (1987), Alencar Feijó / percussão, Claudio Vieira / violão, Jorge Passos / voz, Hélio Ramirez / voz e violão, Fabrício Pardal / baixo; 1º Seminário Sócio-cultural (1991), historiador Tau Golin, Tema: “Ideologia do Gauchismo”; Encontro de escritores (1999) Oscar Di primo, Luiz Antonio de Assis Brasil, Aldyr Garcia Schllee e Cléo dos Santos Severino; Feira Binacional do Livro (2023).
Carlos José de Azevedo Machado (Prof. Maninho) nasceu na fronteira Jaguarão-Rio Branco (Brasil-Uruguai). Formado em Filosofia, é mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Doutorando em Educação pela mesma Universidade. Ativista cultural desde a década de 1980. Um dos fundadores da Sociedade Independente Cultural (SIC), em 1987 (Jaguarão). Foi Secretário Municipal de Cultura e Turismo de Jaguarão (2009 a 2010) e presidente do Conselho Municipal de Política Cultural de Jaguarão (2016/2017). É professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) no campus de Bento Gonçalves. É membro do movimento Fronteiras Culturais desde a sua criação, em 2010.