Toda fronteira é singular e plural. Única e, ao mesmo tempo, similar a muitas outras. Ela é particular e – possivelmente com a mesma intensidade – universal, por possuir, nesse último caso, dois ou mais sentidos passíveis de serem percorridos através do mundo, o que nos levaria, ao fim e ao cabo, novamente ao mesmo lugar, porém chegando pelo seu lado inverso. Já sob a perspectiva da percepção de quem nela vive, ela possui ao menos três visões distintas. A dos que a enxergam como uma barreira, vivendo de costas para o outro lado. Olhando para o outro, os que são eles, como estrangeiro, em oposição aos que correspondem a nós, ao nosso clã, a nossa trincheira, como uma reminiscência de antigas guerras que nos acompanham desde os tempos da formação da Ibéria. São os que não a aproveitam, os que erguem muros invisíveis, mangrulhos e postos de vigia contra invasões fictícias, muralhas contra sua própria condição de seres plurais, múltiplos.
Existe também a fronteira dos que cruzam diariamente uma linha imaginária sem ter nenhuma ou quase nenhuma percepção desse fato, dos que interagem, e mesclam-se, dos que falam idiomas entreverados, dos que são fronteiriços, dos que se entrecruzam, geram prole, dos que lembram e esquecem seus idiomas, formando outro mais rico ainda. São doblechapas mais de alma que de corpo e, contudo, dos que nem por isso se compreendem como integrantes desse universo singular. Na realidade, são eles os que movem os moinhos, ainda que não compreendam como isso ocorre, ou – mais provavelmente – que mesmo se soubessem, pouco ou nada se importariam. E existe uma fronteira menor, no sentido de possuir – ainda – menos integrantes, a que julgo tão ou mais necessária do que as anteriores, a dos que percebem, analisam, utilizam, alimentam e impulsionam, por meio de seus olhares e atos, as interações que ocorrem nesse meio fluído, nessa área sui generis do ponto de vista cultural e simbólico.
No segundo e terceiro casos, seus integrantes são parte ativa de um mundo que chamo de um país além dos mapas. No caso específico da fronteira em que vivo, do lugar onde habito e escrevo do conjunto intersecção Brasil-Uruguay. Trato aqui dos habitantes do lugar que o grande escritor fronteiriço Aldyr Garcia Schlee chamou de Uma terra só.
Ao terceiro grupo, o dos observadores-atores (o qual integro, menos por escolha do que por imperiosa vocação) cabe, me gusta pensarlo, difundir aos demais a boa nova – muito antiga – de que possuem ao menos uma vantagem: a de ter duas imensas regiões culturais passíveis de serem exploradas, com todas as suas nuances, suas peculiaridades, suas variações cromáticas. Expressando metaforicamente essa ideia, seria como os círculos concêntricos de uma pedra caindo no rio, no meu caso o Jaguarão, mas poderia ser no Quaraí, no arroio Chuí, nos rios Uruguai, Paraguai ou em outros tantos.
Os arcos cada vez maiores irão alcançando novas regiões, mostrando, de um lado, toda a cultura de língua espanhola e de outros idiomas do continente: ali vemos, por exemplo, Benedetti e Alfonsina Storni, Zitarrosa e Mercedes, Violeta Parra e García Márquez, Frida Kahlo e José Martí, remetendo-nos até mesmo à Espanha de Cervantes, Antonio Machado e de García Lorca; de outro, vemos um país-continente, com seus diversos matizes e matrizes, de Érico Veríssimo e Cora Coralina, de Guimarães Rosa e Drummond, de Elis e Vinícius de Moraes, de Elisa Lucinda e Ailton Krenak, somando-se a suas raízes portuguesas e africanas, com ecos de Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Cesária Évora, Mia Couto e muitos mais. Esse amplo universo, múltiplo em suas regiões socioculturais, está ao alcance de cada fronteiriço deste continente. Eis a possibilidade, latente ou ativa, que acredito ser nossa mais valiosa herança, a que possui cada ser que vive, cada um a seu modo, dentro desse conjunto intersecção.
Universo duplo ou múltiplo, mas nem por isso menos regional, nem por isso menos provinciano e singular. Em uma frase genial, digna de seus melhores contos, Aldyr Garcia Schlee escreveu que: “Ir de Jaguarão a Rio Branco, ou seja, do lado brasileiro para o uruguaio, ou vice-versa, é ir ao exterior sem sair do interior”. Nessa assertiva ele reafirma, e explica sucintamente – tal fosse um aviso aos navegantes deste tempo – o significado de um de seus títulos mais marcantes. Nela, utiliza o sentido que vai pautar toda sua obra, o que está resumido em apenas três palavras definidoras dessa região, espaço dos que são um, porém também dois – a la vez – ao dizer que, aqui, tudo é uma terra só.
Com relação às ações realmente práticas de quem tem essa terceira visão do que é a fronteira, deixo o registro das décadas que vivi nesse espaço fronteiriço de Jaguarão e Rio Branco. Do lado uruguaio, recordo dois amigos entranháveis, Helen e Carlos Noble, sempre atuantes em qualquer evento que buscasse uma verdadeira integração. Eles organizaram o encontro de escritores uruguaios e fronteiriços na Lagoa Mirim e colaboraram na organização do Fórum Binacional do Chuí, nas feiras do livro binacionais de Jaguarão e em diversos outros eventos transnacionais. Na casa deles, no refúgio do balneário da Lagoa Mirim, abrigaram nomes tão importantes para a cultura sul-americana como o cantor Belchior, o músico Kolla Yupanqui, filho de Atahualpa – patriarca de todos os artistas pampeanos -, o biógrafo Guillermo Pellegrino, os poetas Elder Silva e Enrique Bacci, o escritor de origem basca Andres Echevarría, além de outros autores, poetas e músicos do Uruguai e do Brasil.
Já do lado brasileiro, a instituição mais atuante sempre foi – desde sua criação por Quixotes da cultura, em 1987 – a SIC, Sociedade Independente Cultural, entidade que organizou (e ainda organiza) eventos tão importantes como o Jaguararte, o FALA – Feira de Arte Latino-americana, e o Canto do Jaguar, um festival que teve três edições históricas que reuniam músicos uruguaios, argentinos e brasileiros em um congraçamento em que imperava a integração verdadeira entre povos que não se dividiam por uma linha geopolítica. Povos que, por seus representantes culturais, ali se encontravam e se reconheciam como portadores do mesmo ideal, da mesma chama da utopia de Galeano e de Cervantes.
Por ali passaram Nei Lisboa e Sabalero, os argentinos do El Andén e Dante Ramón Ledesma, os missioneiros Mário Barbará e Chico Saratt, os Olimareños Pepe Guerra e Braulio Lopez, o ativista-cantor Pedro Munhoz e o duo folclórico uruguaio Cantaclaro, além de muitos outros. As apresentações eram feitas nos dois idiomas, espanhol e português, com um locutor do Uruguai e outro do Brasil. Porém, na verdade, todos se entendiam em um idioma comum, o do sonho de estar plantando a semente de um mundo melhor. Um mundo que se tornasse o interior profundo e universal de Aldyr Garcia Schlee.
Martim César é Integrante do grupo poético-musical Caminhos de Si, com o qual se apresentou em diversos eventos sociais e literários do Brasil e do Uruguai (Fóruns Sociais, feiras do livro, saraus literários, etc.). Autor de 5 livros de poesia e contos e co-autor de vários trabalhos discográficos. Vencedor por duas vezes do prêmio Rua dos Cataventos da Sociedade Mario Quintana de Poesia; vencedor de diversos festivais de músicas do RS, tais como o Reponte de São Lourenço do Sul, o Martin Fierro de Santana de livramento, o Laçador de Porto Alegre, o Cirio da cidade de Pelotas, além de festivais nacionais como o Pampa e Cerrado – Brasília-DF e o Festival Nacional da Reforma Agrária; mais de 30 premiações em diversos festivais.